A minha Via-Algarviana

Música: Stefan Krawczyk

Toda a caminhada começa com um primeiro passo. Na primeira vez tiramos duas semanas de férias. Dividimos o percurso em três etapas, cada uma de quatro ou cinco dias. Caminhamos através de oceanos de estevas em flor, encontramos sombra por baixo de sobreiros centenários e observamos as águas que voam majestosamente. Acompanha-nos o perfume do rosmaninho, das laranjeiras em flor e das orquídeas selvagens. Na Primavera os prados estão ainda verdes e os pastores percorrem as pradarias montanhosas com as suas ovelhas e cabras. O nosso objectivo é percorrer entre 15 e 42 quilómetros por dia. Apenas a natureza e os escassos alojamentos existentes conduzem o nosso percurso diário. Nos primeiros cinco dias percorremos 114 km através das zonas de média montanha de Portugal.

Reduzimos a nossa velocidade e descobrimos a nossa lentidão muito própria. Esta natureza é tão maravilhosamente tranquila: sem motores, sem toques de telefone, sem o tom do zumbido eterno de uma cidade. Ouvimos apenas o zumbido das abelhas, observamos os javalis, as cobras, lagartos e camaleões. Os rouxinóis acompanham-nos ao longo de muitos quilómetros. A certa altura, de manhã cedo, ouvimos um estalido no mato. Ficamos quietos e escutamos com ansiedade a voz do nascer do dia que anuncia o amanhecer. E de repetente vemo-los. Dois cervos já adultos que permanecem muito quietos um ao lado do outro e nos observam. Passam-se minutos. A menos de dez metros de distância de nós, os olhos deles brilham nos nossos e os nossos nos deles. Sem sequer nos movermos os nossos olhos tocam-se. O que eles devem estar a pensar de nós? Eles não têm medo nem são tímidos. Eles parecem curiosos. E depois surgem os cães selvagens numa curva do caminho e quebram a magia do momento com respiração ofegante e latidos. Nunca antes tínhamos visto cervos na serra algarvia. De frente para os dois protegendo, afugentamos a matilha com o bastão. Connosco eles não contavam. Por um momento eles travaram, permaneceram imóveis, quase assustados, ficaram a pensar se deveriam atacar ou defender-se, esquivar-se ou morder… Durante um momento ficaram indecisos. O bastão no ar mostra o seu efeito. Assim que os pequenos lobos desapareceram, apercebemo-nos que também os cedros tinham desaparecido sem deixar rasto como se nunca tivessem aparecido.

Descemos até às ribeiras da Foupana e Odeleite – o lugar para um bom banho – e depois voltamos a subir à Serra do Caldeirão. No terceiro dia começam as chuvas. Marchamos horas por caminhos encharcados e lamacentos. A ribeiras transbordam. Nós nos encharcamos e congelamos muito antes de chegarmos aos nossos aposentos. Durante a noite muda a direcção do vento. No dia seguinte volta o sol abrasador e o calor sufocante, que nos acompanham muitas horas do dia.

Baseados em que leis aprendemos a levar a nossa vida? Como reagimos quando nos apercebemos que o caminho que seguimos está completamente errado? Deveremos nós simplesmente voltar para trás até ao cruzamento onde apanhamos o caminho errado? E a qual dos cruzamentos dentre muitos? Ou deveremos simplesmente continuar a andar na esperança de que a dado momento voltemos a encontrar o rumo certo? Haveria certamente apenas uma resposta certa. E o que aconteceria se tivéssemos decidido continuar a caminhar e tivéssemos realmente encontrado o caminho certo – ou o que poderíamos fazer se nos estivéssemos a afastar ainda mais do caminho e nos perdêssemos cada vez mais? Voltar um pouco atrás?

Nos primeiros dias da caminhada no interior não encontramos nenhum hotel, nenhum supermercado, nenhum aluguer de carros – e – nenhum posto de turismo. Encontramos pessoas que vivem dia após dia com esta natureza: viticultores e pastores – encontrámos uma agricultura tradicional, que vive do que é semeado e colhido. Trabalho duro. E assim chegamos a Cachopo com dificuldade e a subir, e um dia depois à Cortelha, a divisória de águas entre o este e o oeste…


.... Aqui é possível um primeiro olhar para a Serra de Monchique. Desde a Cortelha até Monchiquesão ainda 106 km. Continuamos através de Salir e Alte até Silves. São visíveis as influências dos mouros na arquitectura e agricultura. Poços e sistemas de irrigação muçulmanos acompanham-nos - mesmo que na maioria dos casos já não estejam a funcionar. Os caminhantes encontram mais pessoas. Os mais velhos na sua maioria são simpáticos; lembram-se ainda dos tempos em que todos se deslocavam a pé ou transportavam as suas colheitas num burro

Figos, amêndoas, azeitonas e amoras silvestres, alfarrobas aqui e ali, laranjas um pouco por toda a parte e limões, nêsperas, pêssegos e aqui e acolá também manga e abacate. O centro do Algarve é a região mais frutífera, também conhecida pelo melhor mel do país. Em Bensafrim encontramos a maior e mais antiga azinheira do caminho. Ela proporciona um lugar para fazermos uma pausa e descansamos numa mesa abrigada por baixo dos seus troncos enormes. Passamos por um lavadouro restaurado e voltamos a saltar para uma ribeira cuja água corre em direcção a Alte. Na Primavera o país está em plena floração. Abril é o mês mais belo para uma caminhada no sudoeste da Europa: lavanda, rosmaninho, tomilho, salva, agrião e muitas outras ervas germinam e florescem; também orquídeas selvagens, lírios, peônias.

No nono dia iniciamos a subida à montanha. Há ruínas em todos os lugares para onde olhamos. Caminhamos através de um conto de fadas, através um território esquecido. Encontramo-nos agora na Fonte Santa, próximo da Ribeira de Odelouca. Tomamos um banho na água quente. Aqui, no ano 1495, o Rei D. João II deverá ter tomado o seu último banho antes de perecer em Alvor (Portimão). Esperemos que não nos aconteça algo semelhante. O nosso percurso não está marcado em mais nenhum mapa. O percurso oficial da Via-Algarviana é bem diferente. A partir de agora nós caminhamos na antiga rota peregrina de São Vicente. O asfalto da rota oficial incomoda, por isso no decorrer do ano procuramos outros caminhos antigos e históricos, que reconstruímos juntamente com os agricultores e pastores.

Minha Via Algarviana difere sempre da rota oficial onde a civilização e suas doenças destroem a natureza. Pocurámos caminhos que não estão registados em mais lado nenhum. Porque não colocam as estradas e constroem as casas em redor das árvores e florestas, em vez de abaterem florestas inteiras? Porque asfaltam a natureza com alcatrão, só para que os vossos carros possam circular melhor? Porque o betão das vossas casas ocupa o lugar onde viviam árvores? Se calhar isso não vos preocupa porque vos é indiferente? E para vocês isso é natural. Se calhar voltam a plantar uma árvore como acessório, como decoração, direccionada para a rua e em frente da casa, decoram canteiros na cidade e porquê? Porque vos falta a natureza. Mas sempre darão prioridade a um carro e a uma casa antes de uma floresta ou uma árvore. Isso diz-vos alguma coisa? Apenas as pessoas que andam a pé se apercebem disso…


... Nas montanhas encontramos destiladores de medronho, olivicultores e madeireiros. Visitamos o último lagar em Pardieiros, Monchique. A partir do topo da Picota, a 776 metros de altitude, já conseguimos avistar o Cabo de São Vicente. O último terço: 108 km. Vindos das montanhas, atravessamos o campo, descendo uma região onde nos últimos quilómetros vivem apenas poucos habitantes por quilómetro quadrado. Aqui nós encontramos muitas vezes aquilo de que estamos realmente à procura – o silêncio e a possibilidade de durante uma caminhada sermos um só e em harmonia com a natureza. Alguns chamam-lhe de meditação. Outros têm medo de se inserir nessa natureza. Portanto, quem busca este poder e pode percorrer em 15 dias os 328 km a pé, deveria preparar-se mentalmente para a sua Via-Algarviana em Alcoutim, no Rio Guadiana, pelo menos um dia antes. No final da nossa caminhada, entre Vila do Bispo e o Cabo de São Vicente, todos os anos voltamos a visitar um amigo pastor. Outros seis pastores partilham a mesma charneca para pastarem os seus rebanhos. Bebemos um copo de leite de cabra fresco. Uma delícia. Aqui termina o filme“Herdeiros da Revolução”e o respectivo livro homónimo; à conversa com o pastor Manuel António Violente e a sua visão das coisas.

Os jovens abandonam a sua própria aldeia e a sua família sem esta sabedoria e esquecem as suas origens tradicionais. Quase todos eles vivem hoje no litoral ou em grandes centros urbanos como Faro e Lisboa – ou emigram devido ao cheiro do dinheiro e ao progresso.

No entanto, os contadores de histórias cumprem a esperança e a alegria. São a esperança e a alegria durante a longa caminhada. Porque nós podemos escrever muitas boas histórias – ou simplesmente contá-las. Histórias de sucesso. São as histórias de vida das pessoas e do seu trabalho, do seu artesanato: desde o oleiro, ao funileiro, sapateiro, carpinteiro de rodas e ferreiro, desde a feltragem de roupas à amarração de tapetes de linho, desde o agricultor ao apicultor e pastor. Conhecimentos que não se podem perder no turbilhão da modernidade. A certa altura encontramos um primeiro jovem numa das nossas caminhadas. Ele conta-nos que se fartou da cidade. E que o futuro está na natureza e no bom relacionamento com ela. Como é natural, ele encontrava-se junto a uma ribeira com as suas cabras, que ali pastavam e falou-nos sobre os seus dois cavalos e o jardim que ele tinha. Um trabalho que lhe traria sentido.

O Cabo de São Vicente, o antigo fim do mundo no nosso campo de visão. Podemos sentir o cheiro do mar e já ouvimos as ondas a rebentar. As muitas bolhas nos pés do caminhante e as suas cãibras nocturnas valeram a pena. Este caminho árduo foi percorrido pela primeira vez no século quarto, segundo um folheto informativo da Diocese do Algarve. A lenda diz que a nau que levava os restos mortais do mártir São Vicente de Valência encalhou no Cabo em Sagres e que dois corvos puseram a salvo do afundamento. A antiga rota peregrina de Alcoutim até ao Cabo de São Vicente é uma viagem através do tempo e da tradição. Difícil acreditar que duas pernas podem mover tudo…

A minha Via Algarviana: Alcoutim • Vaqueiros • Cachopo • Feiteira • Cortelha-Salir • S.B. Messines • Silves • Caldas de Monchique • Monchique-Marmelete • Aljezur • Arrifana • Carrapateira • Vila do Bispo • até ao Cabo de São Vicente...

próxima caminhada de 30-4-2022 até 14-5-22.

Datas e mais informações no arquivo PDF

Excerto da ECO123 Edição 28 página 3.

Pedidos agora para: info@via-algarviana.com


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